Assim como o vento que sopra e ninguém vê, o tempo passa transformando tudo, às vezes sem ninguém notar...
O que fica é o que o vento traz e o tempo nos deixa impressos a sabedoria e o conhecimento vindos de outras épocas, como que trazidos pelo vento...
Foi assim que cheguei nestas terras: trazida pelo vento. Venho de outra época para deixar aqui um relato de minha missão. Vim predestinada: descendente de africanos, nascida em Salvador, escolhida pelos orixás. Chamo-me Eugênia Anna Santos - Mãe Aninha. Vou contar a todos minha história, que começa muito antes de meu nascimento...
Há muitas gerações passadas, em tempos incontáveis, havia uma terra chamada Oyó. Lá havia um rei. Xangô era rei de Oyó. O mais temido e respeitado de todos os reis. Mesmo assim, um dia, seu reino foi atacado por um grande número de guerreiros que invadiram sua cidade violentamente, destruindo tudo, matando soldados e moradores numa tremenda fúria assassina. Xangô reagiu e lutou bravamente durante semanas.
Um dia, porém, percebeu que a guerra tornara-se um caminho sem volta. Já havia perdido muitos soldados e a única saída seria entregar sua coroa aos inimigos. Resolveu então procurar por Orunmilá e pedir-lhe um conselho para evitar a derrota quase certa. O adivinho mandou que ele subisse uma pedreira e lá aguardasse, pois receberia do céu a iluminação do que deveria ser feito. Xangô subiu e, quando estava no ponto mais alto do terreno, foi tomado de extrema fúria. Pegando seu Oxê, machado de duas lâminas, começou a quebrar as pedras com grande violência. Estas, ao serem quebradas, lançavam raios tão fortes que em instantes transformaram-se em enormes línguas de fogo que, espalhando-se pela cidade, mataram uma grande quantidade de guerreiros inimigos. Os que restaram, apavorados, procuraram os soldados de Xangô e renderam-se imediatamente pedindo clemência.
Levados à presença do rei, os presos elegeram um emissário para servir-lhes de porta-voz. O homem escolhido foi logo se atirando aos pés de Xangô. Reclinando-se, pediu perdão. Humilhando-se, explicou que lutavam, não por vontade própria e sim forçados por um monarca, vizinho de Oyó, que tinha um grande ódio de Xangô e os martirizava impiedosamente. Xangô, altamente perspicaz, enxergou nos olhos do guerreiro que ele falava a verdade e perdoou a todos, aceitando-os como súditos de seu reino. Foi assim que ele ficou conhecido como o orixá justiceiro, aquele que perdoa quando defrontado com a verdade, mas que queima com seus raios os mentirosos e delinqüentes.
Após o desaparecimento do lendário rei Xangô e sua transformação em orixá, seus sacerdotes se reuniram a fim de perpetuar sua memória. Esses ministros, antigos reis, príncipes ou governantes de territórios conquistados pela bravura de Xangô, não quiseram deixar extinguir a lembrança do heroi na memória das gerações futuras.
Formou-se, assim, um conselho encarregado de manter vivo o culto ao rei de Oyó, organizado com os doze ministros que o tinham acompanhado em terra: seis ao lado direito e seis ao lado esquerdo. Seis para condenar e seis para absolver.
Esta história eu ouvi desde muito cedo, assim como outras, como, por exemplo, a chegada de meus antepassados aqui no Brasil...
Em suas mãos, sob suas unhas, restava, ainda, um pouco da terra da Mãe África; em seu peito a dor, a solidão, o medo e a incerteza. Em seu olhar o vazio. Atravessando o mar tenebroso rumo ao desconhecido, enfrentando tormentas sob condições desumanas. Para muitos a vida, longe da terra mãe, já não valia a pena. Os que aqui desembarcaram vieram sob o acalento da mãe do mar. Trouxeram em sua alma a saudade e junto com a saudade um tesouro que ninguém poderia tirar: sua cultura. Graças aos orixás encontraram forças para suportar tamanha injustiça.
Muitas histórias eram contadas no frio da senzala. Nasci em tempo de escravidão, porém nasci livre, escolhida por Xangô, pois trazia no peito o fogo sagrado daqueles que têm sede de justiça. Fui iniciada no culto da nação Ketu por Dona Marcelina de Xangô, no Candomblé do Engenho Velho, apesar de meus pais serem descendentes da nação Gurunsi.
Foi assim que recebi o nome de Obá Biyí, que quer dizer “Xangô Nasceu aqui, nesta terra”. Conheci um Brasil em formação, Brasil de preconceitos e injustiças, Brasil onde as raças estavam se misturando e a cultura negra era marginalizada.
Como Iyalorixá fundei o Ilê Axé Opó Afonjá - “Casa de Força Sustentada por Afonjá” (uma das doze qualidades de Xangô). Estava dando o primeiro passo para a realização de minha missão... Entretanto, ainda havia muito a ser feito. A missão divina de transformar o mundo através dos ensinamentos dos orixás ainda estava longe de acontecer, pois queria ver meus descendentes espirituais “usando anéis de doutores” aos pés de Xangô.
Foi assim que, auxiliada pelo Babalaô Martiniano Eliseu Bonfim, elo de ligação do Opó Afonjá com a Nigéria, instituí, no Novo Mundo, o Corpo dos Obás ou Doze Ministros de Xangô, responsáveis pelo destino civil e religioso do Ilê, sendo inspirados e guiados pela sabedoria do grande rei de Oyó.
Os doze obás são divididos em duas falanges: seis da direita (Qtun) e seis da esquerda (Ósi), representando os dois lados da justiça, assim como o Oxê, machado de duas lâminas de Xangô. Os obás da direita têm direito à voz e voto, os da esquerda, à voz. Os obás são especialmente chamados de “pai” pelos filhos de Xangô e sentam-se ao lado da Iyalorixá, como ministros ao lado de seu rei. Têm a missão de preservar as tradições religiosas e lutar pelo crescimento e pela respeitabilidade da religião africana.
Missão cumprida, eis que chegou a hora.... o momento em que Icú – “a morte” – me levaria para Orum – “o lugar de eterno recomeço” – para juntar-me ao meus dignos ancestrais. Do alto acompanho meu Ilê, meu legado, meus filhos... Assim como Xangô, o rei de Oyó, zela por seu povo do alto da pedreira...
Sigo em paz, ciente que meu trabalho teve continuidade através da luta incansável e abnegada de minhas sucessoras: Mãe Bada, Mãe Senhora, Mãe Ondina e Mãe Stella, sacerdotisas escolhidas pelos orixás após minha partida. Através de seus esforços o Ilê Axé Opó Afonjá prosperou e completou 100 anos de existência, possuindo, hoje, além da escola municipal, o Museu Ilé Ohun Lailai – “Casa das Coisas Antigas”.
Minha maior alegria foi ter visto, ao longo do tempo, grandes expoentes da cultura e da política como Dorival Caymmi, Carybé, Pierre Verger, Jorge Amado, Gilberto Gil, Antônio Olinto, Muniz Sodré, Ildásio Tavares, Antonio Luis Calmon, Camafeu de Oxóssi, Antonio Albérico Santana, Mário Cravo, Vivaldo Costa Lima, Demeval Chaves entre outros, serem iniciados como Obás de Xangô para que se tornassem a voz do “fogo e do trovão”, a voz da justiça e da retidão. Protetores da cultura afro-brasileira.
Para que cada um receba apenas aquilo que por direito lhe pertença. Nem Mais, nem menos...
Como o vento meu tempo passou...Através dos doze Obás de Xangô minha obra ficou imortalizada...em honra ao Pai da Justiça.
Eugênia Anna Santos – Mãe Aninha de Afonjá – Iyá Obá Biyí
Sabemos que muito trabalho resta a ser feito, mas através da proteção de Xangô conseguiremos, enfim, ter um mundo mais justo para todos os povos, com perfeito entendimento e igualdade entre todas as raças, culturas e religiões, basta que para isso cada um de nós assuma sua missão de obá da justiça, de Obá de Xangô.
Este é o engajamento da Alegria da Zona Sul para o Carnaval 2011.
JUSTIÇA!!!
No centenário de criação do Ilê Axé Opó Afonjá, levaremos esta hirstória para a avenida, fazendo com que o legado de Mãe Aninha, esta importante expoente de nossa cultura, seja conhecido por todos.
Carnavalesco Lane Santana
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